Temos vinte e dois ossos na cabeça, dos quais oito formam a calota que nos protege o cérebro, sendo que os dois ossos que formam os lados e a abóbada do crânio chamam-se parietais. Essa rápida recordação das aulas de anatomia do colégio é importante para que eu possa contar direito o episódio do Artur.
Quando se está com uma das mãos atrelada por duas mangueirinhas a dois frascos de medicamentos pendurados em uma haste de metal, ir ao banheiro pode ser uma tarefa que demanda tanto planejamento de percurso quanto uma viagem de jipe ao Xingu. Tem o jeito certo de levantar da cama, de manter a mão em posição que não tire o cateter do lugar, de arrastar a tal da haste, de abrir a porta, entrar no banheiro, fechar a porta atrás de si e finalmente, ó glória, chegar ao vaso sanitário. Se sua mão atrelada for a direita, como era a minha, e você não for canhoto, como não sou, a coisa fica um pouquinho mais complicada. Claro, sempre há a alternativa do patinho ou da comadre, mas numa situação em que o vivente já se sente tão impotente e num desaire só, a gente se aferra a qualquer chance de manter um resquício da dignidade que a enfermidade nos tira.
Pois era meu terceiro dia de internação e me preparava eu para retornar de mais uma expedição matinal à privada. Mãos lavadas, ok. Cateter da mão no lugar, ok. Mangueirinhas sem sangue, ok. Líquidos pingando dos frascos na cadência correta, ok. Lista de verificação zerada, vamos nessa. Não fui. A porta, que se abria para dentro do quarto e não do banheiro, se chocou contra algo, deixando entrever por uma nesga que topara com uma maca.
Opa, colega de quarto novo, pensei, para ocupar o lugar daquele senhor japonês com câncer, o da bolsa de colostomia que se rompeu na hora do lanche na tarde anterior e me fez ficar com fome até o jantar, e que fora transferido para um quarto particular na noite do mesmo dia. Desculpa, senhor, veio uma voz do outro lado, já vamos afastar a maca para o senhor poder sair, ao que respondi eu espero, sem pressa.
Ao se abrir um pouco mais a porta, a primeira coisa que vi foi uma mão completamente enrolada em ataduras, à guisa de um enorme cotonete. Queimado não, pensei eu, tudo, menos um queimado. Não era. Acompanhando o movimento da porta que abria, dei com olhos voltados para mim, mas que pareciam não me ver, olhar fixo em algum ponto de outra realidade, de outro universo, olhos bem abertos em um rosto masculino sem expressão. Só depois, ao me desviar daquele olhar incômodo, que vi a ferida. Não era uma ferida propriamente, mas uma grande mossa ao redor de uma esquisita cicatriz, no lugar onde deveria estar um parietal esquerdo que fora completamente removido. O dono daquele olhar chocante em sua vaguidão e daquela cabeçorra mutilada era um sujeito grande e forte, recém entrado nos quarenta, se tanto, que mal cabia na cama em que os enfermeiros haviam acabado de colocá-lo.
Foi assim que a vida me apresentou o Artur. O que essa apresentação significou para mim, conto depois. O sono é rei.
Um comentário:
Ricardo, estava aqui revisitando blogs que descobri e gostei, como o seu. Reli a história do Artur e me dei conta de que até hoje continuo sem saber o que esse encontro significou para a sua vida. Curiosidade insaciada é uma droga. Conta pra gente o resto?
Aliás, arranja um jeito de escrever de vez em quando, suas crônicas são tão boas!
Grande abraço!
Bete
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