quarta-feira, 4 de junho de 2008

Lições Hospitalares

Dois domingos atrás, cedo ainda, durante uma trivial leitura de jornal, veio a dor no flanco direito. Insidiosa no princípio, excruciante em minutos. Aliás, falo dor por não conhecer nenhuma palavra em português que expresse “agonia física extrema que vara o limiar do humanamente suportável e dispara idéias suicidas”. Mas em alemão deve ter.

Já na emergência do São Vítor, depois de umas quatro horas suportando aquela coisa que só poderia ser descrita sucintamente em língua teuta e de ter tomado todos os analgésicos de rotina para um quadro de cólica renal, que era do que se suspeitava, a “dor” não arrefecia, ao contrário, insistia em inaugurar um décimo quarto grau na escala Beaufort do meu sofrimento. Naquela altura, a médica que me dava atendimento entregou os pontos, sentou-se ao meu lado e ciciou, seu Ricardo, vou ter que dar ao senhor uma medicação que estava evitando ao máximo dar, mas não tenho mais opções. E deu. Depois disso, lembro de alguém perguntando se já tinham arranjado vaga para me internar em algum lugar, porque ali não tinha, e lembro também de ter pensamentos homicidas em relação à médica cretina que me deixou sofrendo aquele tempo todo ao invés de aplicar logo uma injeçãozinha tão maneira...

Entre esse momento, que era lá pelas quatro da tarde, e minha efetiva baixa à enfermaria do Hospital Vital no Engenho Novo, já à tardinha do domingo, as memórias são picadas, esquisitas. Recordo de um comentário para a médica da ambulância de que era minha primeira vez num veículo daqueles e dela me perguntando se queria que ligasse a sirene para entrar em grande estilo; recordo ainda da chegada no destino, quando o motorista esqueceu de puxar o freio de mão e ao invés de eu sair de dentro da ambulância, a ambulância foi que saiu andando sozinha e me largou para trás. Todo mundo riu, eu também, aliás, eu estava rindo de tudo mesmo. Dali em diante, e por um tempo, as lembranças são somente incoerências ou coisas que prefiro não escrever aqui por amor ao meu casamento.

À noite, em leito de hospital e com o efeito da injeçãozinha maneira passando, a dor voltou, porém menos inclemente, até suportável. Voltou, também, a lucidez plena das coisas e com ela a constatação da condição de internado. Recostado, negociando com a dor, fechei os olhos e tentei encontrar dentro de mim alguma resignação. Percebi, então, que alguém acabara de entrar na enfermaria, na realidade um quarto com mais dois leitos além do meu, e mexia nas mangueirinhas, duas, que haviam me espetado numa veia no pulso direito, na linha do polegar. Boa noite, disse uma voz masculina, a quem eu, ainda de olhos fechados, respondi boa noite, doutor. Não sou médico, amigo, respondeu a voz, ao que abri os olhos e dei de cara com um sujeito jovem, menos de trinta com certeza, pendurando no suporte ao lado, além do inconfundível frasco de soro fisiológico, dois frascos menores, um de antiinflamatório e outro de antibiótico como me explicaram mais tarde.

Desculpe, disse eu, não reparei que você era enfermeiro. Também não sou enfermeiro, amigo, disse ele, com um sorriso simpático, mas quase condescendente, sou auxiliar de enfermagem, e me explicou a diferença entre o uniforme dos enfermeiros e o dos auxiliares, mas que não me preocupasse, que certamente ficaria ali tempo suficiente para aprender a distinção, e riu da própria piada, de mau gosto, mas bem intencionada. Ri também, embora não tenha muita certeza do quê. Foi de nervoso, acho.

Em seguida, o auxiliar de enfermagem, Alessandro era o nome na plaquetinha, enquanto preparava a primeira das diversas doses de Dipirona que viriam, começou a cantarolar “Ode to Joy”, aquela parte da nona sinfonia de Beethoven que tem o coral. Gosto muito dessa música, comentei, eu também, respondeu. Sabe como se chama, perguntei já pronto para fazer recomendações ludwiguianas a quem devia ter ouvido aquilo em algum comercial de sabonete, com as admoestações de praxe de que havia vida musical além do pagode e do funk.

“Ode an die freude”, foi a resposta que recebi.

Minha cara de ué deve ter sido tamanha que o auxiliar de enfermagem Alessandro pacientemente explicou para o senhor tradutor Ricardo que “Ode an die freude” era o título original da peça, isso mesmo, peça, que foi escolhida como hino da União Européia, que a Nona era uma de suas composições favoritas, que gostava muito de Beethoven, apesar de suas oscilações entre o clássico e o romântico, que das sonatas preferia aquelas para o piano, que dos “Três Bês”, Beethoven, Bach e Brahms, este último era seu preferido, que apesar de Haydn ter sido um grande mestre, Beethoven dera azar de não ter conseguido estudar com Mozart, e que os três Bês deveriam ser, na verdade, três Bês e um esse, de Schubert, e enquanto dissertava cantarolava aqui e ali trechos de composições de uns e de outros.

A certa altura, ri. Ele riu também, disse viu, a Dipirona já está fazendo efeito, concordei. Mas não era por isso que eu ria, ria de mim mesmo, da minha arrogância de achar que alguém, por ser auxiliar de enfermagem, necessariamente carece de certos “refinamentos culturais”. Ri por me descobrir ridiculamente preconceituoso e isso foi muito bom.

Conversamos por mais um tempo ainda, o papo mais improvável de ser levado em cama de hospital, eu fã de Vivaldi, ele atalhando que Vivaldi era legal, mas com um fraseado muito repetitivo, que preferia Bach ou mesmo Corelli, e ambos, no final, concordando que Albinoni é bom demais.

Despedimo-nos, então, meu mais novo amigo de infância atrasado em seus afazeres por causa da prosa e eu me curando de dois males, um do corpo, outro do espírito, antes dissimulados, mas agora evidentes e recebendo o tratamento que merecem.

Foram quatro dias de internação em que descobri uma patologia suspeita e um preconceito insuspeito, além de ter recebido uma boa lição. Sobre essa lição, falo depois, que o friozinho convida à cama para dormir. De conchinha.

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